26.10.06

Comunicação

Telê,
Essa casa já é pequena para nós dois, me sinto sufocada e
o ar me falta. Mesmo que você esteja na sala, sinto tua
presença asfixiante no banheiro, na cozinha, no quarto
de hóspedes e no escritório. Simplesmente não consigo
mais. Preciso me libertar.

Isaura.

Pendurou o bilhete na geladeira e saiu a passos lentos.
A resposta ficou pendurada na mesma porta branca e fria por semanas infinitas:

Isa,
Não se preocupe, abriremos novas janelas e construiremos
um quarto a mais. Combinamos tudo no jantar.
Telúbio.

9.10.06

Rodrigo e o céu.

Rodrigo é o tipo de pessoa que consegue passar despercebido e é fato que ele sempre gostou disso, se aperfeiçoando com o passar do tempo. A verdade é que ele feito de olhares e, ao contrário de um corpo bonito e um cabelo brilhante, os olhares são do mundo das sutilezas e causam estranheza para a maioria das pessoas.

A melhor descrição que se pode ter de Rodrigo vem daqueles olhos amendoados, espremidos, rápidos, quase contraditórios quando comparados ao resto do corpo. O olhar de Rodrigo é feito de pequenos momentos, de constante encantamento e eterno descobrir. Dentro daquelas duas pedrinhas brilhantes, o tempo parece não passar e é certeza que daqui a cinqüenta anos elas continuarão exatamente as mesmas: enormes na sua pequenez.

Desde sempre Rodrigou observou mais do que viveu, resultado de uma timidez sufocante que carrega consigo, timidez presa no canto da boca, causadora de sorrisos tortos e em eterna briga com a sua vontade de comer o mundo. Numa madrugada cálida, essa briga encontrou o final: a vergonha se apossou do corpo inteiro e a fome ficou com os olhos. Vocês podem até achar que a tal timidez tinha, enfim, levado a melhor, mas é de Rodrigo que estamos falando e, perto daqueles olhos, tudo é muito pouco.

6.10.06

Ana e a dança.

Ana nasceu numa terça-feira chuvosa de fevereiro. Isso já diz muita coisa sobre ela.

As terças são sempre dias mortos, perdidos ente o começo, o meio e o fim da semana. Especialmente aquela terça, foi morta. A manhã não quis chegar e nada foi colorido. O céu, então, como protesto, se pôs a chorar. Primeiro um choro pequeno, compassado e escasso, depois de lágrimas grossas e pesadas. Seria, portanto, um péssimo dia para conhecer o mundo. Seria, não fosse fevereiro.

Fevereiro é mês faceiro, já vem contrariando janeiro, que teima em querer começar o ano e nunca consegue. Todo mundo sabe que vida nova mesmo só começa depois do reinado de Momo. Feveiro é criança, que teima em nunca crescer, matando todos de inveja com seus vinte e oito dias costumeiros. Mas como é mês indeciso, se dá o luxo de às vezes ter vinte e nove, para fugir do tédio. Fevereiro é carnaval.

E assim era Ana: pedaço discreta, pedaço chorosa e inteira alegria. Passaria despercebida, entre águas correndo, se não tivesse um dia se posto a dançar. Se não tivesse se posto a mexer, com pés de lã e corpo de vento.

Quando Ana dança, o mundo se põe a assistir e qualquer salão fica pequeno, as pessoas ficam pequenas. Não é um fenômeno que se possa ignorar. Quando Ana dança, tudo ao redor se envergonha, se encabula, se esconde. Com movimentos ritmados, às vezes tortos, outras tantas vezes grosseiros, Ana existe.