27.12.05

Memórias perdidas...

A minha avó sempre gostou muito de supermercado. Ela faz as compras devagarinho, compra uma coisa por dia e sempre em pouca quantidade, só para poder ir mais vezes.

Ela vai passeando devagar por aqueles corredores largos, bem iluminados e cheios de prateleiras coloridas. Acho que é uma espécie de terapia: ver as oscilações de preços, escolher o melhor sabão, descobrir marcas novas, pegar as melhores frutas. Mas o melhor mesmo é descobrir novas promoções, colocar no carrinho e se sentir como se tivesse feito uma grande descoberta. Grande e individual.

Quando eu era mais nova, sempre ia com ela. E, todas as vezes, dava um jeito de me perder. Primeiro eu aproveitava toda a minha liberdade. Todos os cheiros do supermercado e todas as cores eram só minhas, sem ninguém para dizer o que fazer ou para onde ir.

Mas depois que eu enjoava da minha liberdade e sentia falta da mão sempre quente da minha avó, ia para a central de atendimento ao cliente e pedia para anunciar naqueles rádios internos. Era a melhor parte da aventura. Ouvir o meu nome ressoar e pensar que centenas de pessoas saberiam da minha existência naquele minuto. E, convenhamos, centenas de pessoas, para uma criança de cinco ou seis anos, era um mundo inteiro.

Hoje em dia eu não vou mais com a minha avó para o supermercado. Mas continuo me perdendo. Me perdendo de mim mesma, das pessoas, dos lugares comuns. Me perdendo da vida. Mas nessas horas eu experimento um desespero profundo e não tem rádio interno para me dar uma mão quente e me levar para casa.

21.12.05

Quando o mundo gira mais rápido...

Tem momentos que são só nossos e tudo o que eu consigo ver são os teus olhos, mesmo que os meus estejam fechados.

É nesses momentos que eu percebo que qualquer raiva que eu sinta de você é pequena demais para importar... e quem dera perceber isso nos momentos em que eu realmente preciso perceber.

17.12.05

Natal

Em primeiro lugar, isso não é mais um post sobre o espírito de natal, a alegria de montar uma árvore, as boas lembranças da infância ou festas de família. Eu acho que essas coisas não existem em mim, nunca existiram. Não existiam ao seis, não existem agora aos dezoito. Que fique bem claro que eu não sou nenhuma militante contra as tradições ou pertencente a uma seita estranha que odeia os ícones do cristanismo, eu simplesmente nunca gostei do natal.
As minhas lembranças boas das festas se resumem a ficar esperando dar meia-noite para abrir os presentes, presentes esses que eu sempre fui escolher, ou seja, nunca existiu papai Noel para mim. As lembranças ruins envolvem tudo aquilo de milhares de tios, comprimentos falsos e muita comida. Isso enquanto ainda existiam festas de família pra mim, porque de uns anos pra cá, nem festa mais tem. Ano passado a ceia de natal da minha casa foi lasanha congelada e sorvete.
Minhas últimas vésperas de natal eu passei na casa de André, com a família dele. A única coisa boa foi descobrir que o problema com festas de natal não é nada familiar, porque na casa dos outros pode ser ainda mais chato. Isso sem falar nas decorações, o bom gosto se esconde no final o ano, por favor. O que diabos são aquelas bolas gigantes horrorosas penduradas na Agamenon Magalhães?
E o motivo desse post é bem simples: hoje eu paguei todos os meus pecados no shopping. Foi uma das piores experiências da minha vida, sem nenhuma sombra de dúvida. Todas aquelas pessoas indo e vindo, todo aquele clima de consumismo e gente saindo pelas janelas. Não sei ao certo se isso tudo é culpa do natal ou do décimo terceiro. Estou tentando acreditar que é do décimo terceiro, caso contrário, ano que vem vou me trancar em casa no começo de dezembro e só saio lá pro dia vinte e sete.

16.12.05

Felicidade clandestina*

Eu tô me sentindo tão bem que resolvi escrever sobre as pequenas felicidades da vida, sabe? Aquelas coisas pequenas, que duram uns pouco minutos e fazem o dia inteiro melhor (ou pelo menos as próximas horas, até acontecer alguma coisa que estrague tudo).
São duas horas da manhã de um quinta e eu acabei de chegar em casa. Não foi nenhum programa fora do normal: cinema, comida e uma parada em um bar. Mas acontece que o filme foi bom, a comida tava ótima e no tal bar as pessoas eram agradáveis e a conversa foi boa.
Essas coisas são todas simples, simples até demais. De tão simples se tornam clandestinas, furtadas, inventadas. É como se o mundo inteiro fizesse tanta confusão com essa história de felicidade que ficar contente com tão pouco seria abuso, uma falta de perspectiva ou de inteligência. Motivo mesmo de se envergonhar e a vergonha, como não?, anula qualquer felicidade. Afinal, as pessoas são podres, o mundo é caótico e até a natureza está se vingando, ou seja, qualquer pessoa inteligente vê isso. Aprendam que só uma sorte braba ou amor recém descoberto devem ser motivo de felicidade. Afinal, já cantavam por aí: tristeza não tem fim, felicidade sim...
Acontece que em momentos dessas felicidades roubadas (e nas não-roubadas também), o que se quer mais é gritar para o mundo. E pode ser por pegar um ônibus vazio, por chegar em casa e ter um pedaço de chocolate na geladeira, pela água quente batendo nas costas... Por qualquer coisa, se quer mais é gritar. E que se grite.

*Felicidade clandestina é o nome de um conto de Clarice Lispector.

15.12.05

Das coisas importantes da vida*

amor
O dia amanhaceu claro, com o céu muito limpo. Um azul desconcertante, brilhante, ofuscante. Depois de dias de chuva, o sol claro parecia fazer anunciações, prever fartura, premeditar felicidade.
Clarissa abriu os olhos como um bater de asas de borboleta, se espreguiçou como um gato e sorriu como só os humanos conseguem sorrir. Só depois de olhar tudo ao redor conseguiu lembrar que dia era. Calçou as pantufas rapidamente e correu para abrir os embrulhos coloridos que davam uma vida nova ao quarto. Desfez cada laço e rasgou cada pedaço de papel com um prazer infantil, inocente. A verdade é que abrir os presentes era a melhor parte de fazer aniversário. Depois de abrir cada embrulho, com o cansaço e a melancolia que seguem toda grande felicidade, sentou bem no meio do mar multicolorido que bagunçava o quarto todo. Foi então que percebeu que, a partir daquele dia, tinha oito anos. Com todos os significados que isso poderia ter. Tentou pensar nas coisas que não se podia fazer com sete anos e em como seria maravilhosa a sua vida agora que tinha crescido. Agora, que não era mais criança, precisa arrumar um amor. Afinal, é isso que é crescer, não é?
Porém o fato é que não sabia onde procurar. Não se acha um amor em todas as esquinas, não se pede enfiando o dedo no bolo de chocolate, não se suplica às estrelas. E foi nesse instante que foi acomedida por uma melancolia fina, uma tristeza sem razão, uma vontade de chorar inacreditável. Não sabia ao certo porquê, mas sabia que achar o tal amor era agora fundamental e que toda a sua felicidade futura dependia disso.
Foi então que tudo mudou, o amor desconsertou as coisas. Clarissa cresceu.

pensamentos
Cada pessoa é um mundo.
Vinha sentada no ônibus perto da janela, com a cabeça encostada no vidro gelado. Olhava fixamente para a calçada, uma visão embaçada pela rapidez com que passava e pelas gostas de chuva que se amontoavam no vidro. O pensamento estava distante, embalado pelo sono e pelo ócio típico de um domingo. Fixou o pensamento nessa frase e começou um esforço mental para se lembrar onde tinha a ouvido. Lembrava que a tinha ouvido num momento de distração, na hora nem tinha prestado atenção e nem sabia porque isso tinha chegado na cabeça agora. Mas os pensamentos são sempre assim: chegam sem terem sido convidados.
Talvez tivessem dito isso na televisão, ela nunca prestava atenção na televisão de manhã cedo, mas continuava mantendo o costume de tomar café na frente dela. Podia ter sido naquela aula de matemática, que estava com os olhos baixos escrevendo alguma coisa no caderno enquanto o professor explicava o que era matriz quadrada. Então se lembrou que a prova era na terça-feira e que não tinha estudado nada. Costumava estudar com o Ricardo, mas depois daquela briga... Não conseguia entender o porquê da briga, parecia tão ilógica! Mas não ia pedir desculpas, não sem antes entender os motivos dele. Não tinha muito a fazer, afinal, cada pessoa é um mundo.

felicidade
Disseram dia desses na televisão que a vida podia ser boa.
Era uma tarde quente de terça-feira. Uma daquelas tardes em que tudo parece normal demais, que a rotina segue o seu curso, que o tédio roça nos dedos. Clarices lavavam os pratos do almoço, Josés palitavam os dentes, Marias voltavam pro trabalho, Amaros pegavam as crianças eufóricas na escola. E num instante tudo isso parou. Marias, Josés, Clarices e Amaros olharam para aquela telinha colorida e se perguntaram quem tinha coragem de dizer aquilo? As notícias de guerras, de mortes, de assaltos, de alta nos preços... tudo foi interrompido para se dizer que a vida podia ser boa. Ninguém achava que isso podia ser verdade até então. A vida era dura, difícil, corrida, violenta. Mas quem ousaria duvidar da televisão?
E foi então que o mundo foi contagiado pelo som estridente das gargalhadas, que as flores se abriram, que as borboletas deixaram para trás suas cascas secas. De repente todo mundo passou a se perguntar como é que vida não era boa antes. A esperança, que em algum momento foi esquecida no fundo da caixa, voltou a flutuar livre pelo ar e a roçar pelos rostos de Marias, Josés, Clarices, Amaros...




*Esses textos foram escritos em junho desse ano e foram importados do blog antigo. Só não me perguntem o porquê.

Contadora de histórias.

-É isso que eu quero ser quando crescer: escritora!, disse em tom de importância uma menina segura, do alto dos seus seis anos de idade.
Em casa todo mundo achou estranho e até bonitinho essa vocação recém descoberta. Com o incentivo curioso de pai e mãe, os livros começaram a sair aos bolos: todos muito bem coloridos, escritos com letras irregulares num papel ofício cortado com esmero e grampeado com precisão nas pontas. As estórias falavam desse mundo e de mundo imaginários, problemas reais e problemas inventados ganhavam resoluções simples e claras. Mal nenhum acabava sem solução na útima página, não havia desenho final sem sorrisos nos bonecos palitos.
O tempo foi passando e a menina segura foi indo junto, a infância passou como uma brisa leve. Veio então a garota insegura, cheia de medos e angústias. Nem sempre os problemas tinham solução, o papel ofício foi trocado por diários e de públicas, as histórias passaram a ser privadas.
Numa bela manhã, a ainda menina acordou se sentindo mais mulher, o cadeado do diário foi aberto e os textos saíram da gaveta. O sonho de ser escritora foi abandonado e ela se descobriu uma contadora de estórias, o que, convenhamos, é bem melhor do que ser escritora porque tem a liberdade da não-profissão e a força da necessidade.

14.12.05

Começo...

Acho que das coisas mais difíceis de viver é isso de dar início a alguma coisa. Deve ser por isso que se vive de adiar, de deixar pra depois, de acabar esquecendo.
Depois que se começa, tudo fica mais simples, sabe? É como se depois de dar o primeiro passo, a coisa criasse vida própria e continuasse sozinha, ou pedisse pela sua continuidade, ou, na pior das hipóteses, virasse força do hábito.
Aí hoje, num dia que amanheceu sem o embalo de uma noite de sonhos, eu decidi que cansei de deixar as coisas pra depois, esquecer e acabar me adiando. O primeiro passo foi criar esse blog.
O ciclo de começos está inaugurado e, como tudo que já começou, vai existir quase que por si só e receber fermento. Mas fermento pra pão, que é pra dobrar de tamanho.